segunda-feira, 2 de abril de 2007

O inevitável e aquele outro - Paulo Brabo

Obs: Mais um texto instigante de Paulo Brabo, um dos poucos homens que ainda me levam a refletir na verdade de Deus, pois a maioria que está por aí apenas me faz "des-pensar".


Por Paulo Brabo


Minha intenção em O karma do livre-arbítrio era essencialmente expor a distinção técnica entre dois modos distintos de se pensar sobre determinismo, o científico e o teológico. Com o risco de dissipar a nuvem de mistério que deve acompanhar minha opinião pessoal sobre o assunto, permitam-me acrescentar uns poucos parágrafos a respeito da minha posição.

Será útil que concordemos, antes de tudo, sobre a distinção entre o que está predestinado e o que é inevitável. Segundo o determinismo teológico calvinista, as coisas acontecem de modo inexorável porque foram pré-dispostas pela inteligência de Deus a acontecerem dessa forma precisa; cada momento é previsível porque está predestinado. Para o determinismo científico, por outro lado, nada é conscientemente escolhido pela inteligência divina ou pela nossa. Ao contrário, tudo é rigorosamente fortuito. As coisas são previsíveis não porque exista por trás delas um planejamento prévio, mas porque, dadas as mesmas condições do sistema, aconteceriam inevitavelmente da mesma forma. Cada momento é previsível porque, dentro das variáveis de um sistema simples como o nosso, é inevitável.

Para o determinismo teológico, seremos capazes de prever o futuro sempre que Deus no-lo revelar. Para o científico, poderemos prever o futuro sempre que tivermos um conhecimento adequado das variáveis envolvidas e da relação entre elas.

Para um calvinista estava sim previsto por Deus, desde antes de toda a eternidade, que o Vinicius estaria escrevendo o seu comentário às 15:03 do dia 28 de março de 2007 enquanto tomava tererê na tarde quente de São Paulo. O cientista cognitivo, por outro lado, opinaria que o Vinicius tomava tererê porque estava quente; que escreveu as 15:03 porque não pudera escrever antes; e que era inevitável que alguém com as suas inclinações e bagagem de experiências acabasse se pronunciando sobre o assunto, e precisamente da forma como fez.

Dito isto, posso afirmar que creio muito mais no conceito de inevitabilidade do que no de predestinação, na forma como os expusemos aqui. Penso estar claro que o mundo vive debaixo da sombra da inevitabilidade. Dado o universo ser como é, as leis da física serem como são e os seres humanos serem de carne como são, o mundo da nossa experiência não tinha como ser diferente. São inevitáveis as coisas que sabemos que nos matam: as injustiças, os assassinatos, os roubos, as invejas, as cobiças, os capitalismos e as guerras. São inevitáveis as coisas que cremos que nos redimem: as gentilezas seletivas, as bondades direcionadas, a proteção dos amigos, o corporativismo entre semelhantes, os preconceitos e as preferências – coisas que, naturalmente, acabam patrocinando todas as injustiças mencionadas no item anterior. Não há predestinação nisso e ela é mesmo desnecessária.

Não é preciso predestinação para que Caim mate Abel, para que Isaque prefira Jacó, para que Jacó prefira José, para que José seja vendido pelos irmãos. Não é preciso predestinação para que tudo dê errado.

Não é preciso predestinação para que Caim mate Abel.

Minha postura sobre a predestinação está ligada precisamente a esta relação do ser humano com o que inevitável. Com Tolkien e Jacques Ellul, penso que a característica mais curiosa da nossa condição (e o mais convincente indicador da existência de Deus ou de algo que o valha) está em que “o ser humano pode sempre colocar em andamento eventos além daqueles que parecem inevitáveis”.

Creio que se como seres humanos somos predestinados a alguma coisa, é a fazer frente à grossa maré da inevitabilidade que tolhe os nossos movimentos e os de todos à nossa volta. Havendo um Deus, esse nos chamou a todos e a cada um para afundarmos nesse mundo de forma positiva, gerando soluções criativas (e em grande parte paliativas) para o velho problema do que não pode ser evitado. Quando lutamos contra a eloqüência do inevitável estamos fazendo aquilo para que somos escolhidos e predestinados; quando não, escolhemos nos conformar a este simulacro de vida, inteiramente esvaziados do espírito criativo do destemor de Deus.

Ecos desse chamado e da singularidade dos que o ouvem aparecem nas lendas de todas as culturas: o herói é invariavelmente chamado para deter o que não pode ser detido. Ele pode ser pequeno, despreparado e insignificante, mas sua singularidade está em levantar-se contra a maré; essa é em muitos sentidos a sua vitória, sua única vitória. E os heróis nos fascinam porque sentimos que é dessa forma que poderíamos – que deveríamos estar vivendo.

O Sermão do Monte, a história de Gandhi e a vida de Madre Teresa são testemunhos eloqüentes da possibilidade de uma vida postada conscientemente contra a torrente da inevitabilidade. E são, ao mesmo tempo, exemplo da quase completa futilidade desses esforços. Todos esses “lutaram contra a carne”, isto é, lutaram contra as paralisantes limitações inerentes à condição humana, mas não conquistaram muita carne além da sua. Tanto Jesus quanto Gandhi e Madre Teresa deixaram poucos discípulos no que diz respeito ao seu despejo em enfrentar o inexorável.

Não há naturalmente mérito em limitarmo-nos ao sabor do inevitável. Sendo o Brabo quem é, seria inevitável que ele levantasse esta Bacia e depositasse nela este tipo de coisa. Será porém inevitável que eu coloque em prática alguma coisa do que recomendo? De modo algum. Isso requeriria uma estirpe de coragem que não tenho e não quero ter.

No que me diz respeito não há história que reflita mais claramente a glória e os perigos desse trajeto do que o ciclo O Senhor dos Anéis, de Tolkien. A trilogia dá testemunho do trajeto de uns poucos heróis em sua luta contra a inevitabilidade. É inevitável que o Anel do Poder produza algum estrago no universo. É inevitável que Frodo seja contaminado pela posse do Anel. É inevitável que sejamos irremediavelmente contaminados pela existência. É inevitável que sejamos traídos e abandonados por um obsceno número de aliados. É inevitável que tenhamos de encarar de frente a morte, e que a esperança seja encarada, até por nós mesmos, como tolice. É inevitável que a eternidade seja maculada pela amargura que nos marcou a ferro e fogo. Mas quando houver glória, quando houver coragem, quando houver lealdade – ah, essa será como uma estrela resplandecendo na mais impensável escuridão.

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