sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Nem todo sagrado é dívino - Ricardo Gondim


Maravilhoso texto, simples e profundo, leia:



Toda experiência com o divino é sagrada, mas nem toda experiência sagrada é divina.


As experiências sagradas colocam o crente em contato com o numinoso, com o mistério, com as dimensões que transcendem os mecanismos biológicos e físicos da vida. As experiências sagradas acontecem em lugares específicos, através de objetos especiais, com rituais ou na meditação e assimilação de textos místicos. As experiências sagradas precisam de contornos religiosos definidos – que não são, obrigatoriamente, próprios de uma igreja.


Uma torcida organizada numa arquibancada de estádio também pode proporcionar uma experiência sagrada - e que será muito parecida com a de uma religião. Arrepios, enlevos e arrebatamentos na hora do gol, ou quando a taça de campeão é erguida, possuem características religiosas. Assim, as experiências sagradas não se limitam, exclusivamente ao campo religioso. Uma tarde em Itapoã, um reencontro de amigos saudosos, bebericar café com pão-de-queijo num dia chuvoso, podem ser sagrados sem que signifiquem um encontro com Deus.


Já as experiências com o Divino não precisam de focos específicos (Deus é mistério e espírito, e não pode ser contido num foco); não se restringem a lugares (adora-se a Deus em espírito e em verdade, nunca em templo feitos por mãos humanas).


Repito, a experiência com o Divino será sagrada, mas nem sempre religiosa. Quando o Samaritano ajudou o homem que agonizava numa beira de caminho, ele encarnou, e experimentou, o amor divino numa dimensão que estava longe de ser religiosa. Também, quando no último dia, Deus separar os bodes das ovelhas, o critério não será religioso. O destino eterno das pessoas será definido por ações muito naturais como dar de comer a quem teve fome, vestir os nus e solidarizar-se com os encarcerados.


As instituições religiosas, sempre ávidas de defenderem o direito de existirem, tentam confundir as duas experiências. Afirmam, sem titubear, que seus rituais, cultos e militância são Divinos. Nem sempre!


O que as diferencia o Divino do Sagrado? As experiências religiosas, por mais arrebatadoras, por mais deslumbrantes, por mais apavorantes, não conseguem transbordar para a vida. Restritas a uma hora e a um lugar, no máximo, provocam sentimentos piedosos. Segundo Rudolf Otto, geram, simultaneamente, “medo e fascínio”, mas ficam nisso.


Por outro lado, as experiências com o Divino suscitam integração, mudança de consciência, compromisso com a vida; uma práxis transformadora. Para encontrar-se com Deus, não se precisam de ritos, compromissos com o rigor dogmático ou de obediência institucional, mas de fé. (Aqui, defino fé como uma coragem existencial). Deus se revela e apostamos que seus princípios e verdades são suficientes para tenhamos vida e vida com abundância.


As igrejas se especializaram em reproduzir experiências sagradas, que podem ser estereotipadas, massificadas e desejadas como um fim em si mesmas.


As experiências com o divino, porém, são sempre únicas e irrepartíveis; elas fogem do controle sacerdotal (o Espírito sopra onde quer e como quiser) e não podem ser ideologicamente manipuladas.


As experiências sagradas se mantêm na vertical: mulheres e homens em busca do transcendente; são também intimistas: mulheres e homens emocionalmente afetados pelo misterium tremendum.


Todavia, as experiências com o Divino se expressarão na horizontalidade (a fé sem obras é morta); sempre na relação com o próximo. Eis o motivo porque Jesus enviou seus discípulos para fora dos contornos religiosos. Eles deveriam ir pelas estradas, atalhos e vielas para promoverem a vida e, para isso, a religião é desnecessária.


Soli Deo Gloria.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Deus é e também faz

Gostaria de confessar algo: preciso de um Deus que não somente seja, mas também que faça.

A ênfase sobre Deus hoje está entre o que Ele é o que Ele faz. Muitos servem a Deus porque ele é Deus, e unicamente e fato de Deus ser já basta para que vivam felizes com sua fé e prática religiosa.

Nesse caso não importa a ausência de Deus, o sono do divino, à completa apatia divina, o importante é que ele é Deus e eu creio nele, não importando onde ele esteja. Isso é um modo belo de dizer muitas vezes que minha fé só abarca o campo das minhas idéias, mas que na vida real ela não “funciona” muito bem.

Já para outros, a fé em Deus depende quase que exclusivamente do que Ele faz. Contradizendo Hb 11:1, a fé é a prova (e também é provada) das coisas que se vêem e são palpáveis. Sendo assim, não importa muito se Deus é ou não Todo-Poderoso ou coisa do tipo. Não importa também o que a Bíblia ensina sobre o caráter de Deus, ou seja, sobre o que Ele é; porém, os textos que enfatizam a grande atividade de Deus em favor do homem, são os mais recitados e decorados por aqueles que dependem de uma divindade que seja “funcional”.

Tenho oscilado entre esse dois pólos que são aparentemente contraditórios. Conheço muitos amigos e irmãos na fé que estão buscando refletir e se relacionar com o Deus que simplesmente É. Isso é maravilhoso, pois quando entendemos sobre o caráter e a natureza de Deus; temos vislumbres de sua glória tão impactantes e transformadores. De certa forma, mesmo que a passos muito lentos, sentimos que nosso caráter também se transforma segundo o Dele.

Mas a vida se impõe, e fragilidade humana é incontestável. Existem momentos que realmente pensamos que “os céus estão conspirando” contra nós. Situações que enfrentamos que fogem a nossa competência, crises e problemas que muitas vezes se acumulam e abatem nosso coração.

Sei que a palavra nos ensina que “no mundo teríamos tribulações”, sei que todos enfrentam problemas, sejam grandes ou pequenos. O problema está quando precisamos ter “bom ânimo”, força e firmeza quando nossa estrutura interna está em frangalhos. É difícil viver só de bom ânimo quando não há em nossas mãos capacidade nenhuma de reverter à situação desfavorável em que vivemos.

Existem momentos onde só o milagre de Deus pode reverter nossas situações difíceis. E deixar de crer no agir de Deus, mesmo que no milagre sobrenatural, preterindo pelo ser de Deus, é algo no mínimo estranho a fé dos primeiros pais. Não havia entre os “pioneiros” essa dicotomia entre o que Deus é e o que ele faz, e muito menos existia uma apologética engajada em tentar explicar as atitudes de Deus que parecem ser contraditórias ao seu caráter. Essa preocupação é moderna e retira toda a graça da fé, que é a graça de ser abençoado por Deus sem ter que necessitar de explicações do tipo “como?” e “porque?”.

Por isso eu reafirmo com todo meu coração: preciso de um Deus que não somente seja, mas também que faça. Preciso de Deus não só como meu amigo, mas meu ajudador, aquele não só pode, mas que também quer operar para que minha vida seja mais plena e feliz. Agora não me pergunte como, isso é pela fé!

sábado, 24 de novembro de 2007

O caminho é um só!



Quando o sol bater


Na janela do teu quarto


Lembra e vê ê ê ê ê


Que o caminho é um só...




Porque esperar


Se podemos começar


Tudo de novo


Agora mesmo...




A humanidade é desumana


Mas ainda temos chance


O sol nasce pra todos


Só não sabe quem não quer...




Quando o sol bater


Na janela do teu quarto


Lembra e vê ê ê ê ê


Que o caminho é um só...




Até bem pouco tempo atrás


Poderíamos mudar o mundo


Quem roubou nossa coragem?


Tudo é dor


E toda dor vem do desejo


De não sentimos dor...




Quando o sol bater


Na janela do teu quarto


Lembra e vê ê ê ê ê


Que o caminho é um só...

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Atos dos Apóstolos - Uma história das origens cristãs

O livro de Atos é uma preciosidade histórica que foi incluída nas páginas do Novo Testamento justamente pelo seu caráter histórico. Podemos dizer que, ao modo de Lucas, esse é um relato histórico das origens cristãs.

Digo “ao modo de Lucas” porque o autor não é imparcial como seria hoje um historiador (pelo menos em tese). Lucas imprime sua teologia e seus paradigmas em cada parágrafo do livro, desejando mostrar como a mensagem chegou até os “confins da terra”, que no caso significava Roma; e para isso ele mostra Paulo como o grande arauto do evangelho aos gentios, lançando assim na obscuridade o trabalho dos demais apóstolos.

Apesar dessa divisão no livro, entre os atos de Pedro e Paulo, o livro tem muito a nos ensinar sobre as crises vividas pela comunidade cristã. Precisamos ler sobre as origens da Igreja sem romantismos, mas sendo realistas. Lucas, apesar de suas preferências, não esconde as falhas que acontecem no grupo apostólico. Erros e falhas na interpretação da mensagem de Jesus não são unicamente privilégios nossos, mas também já fizeram parte da história primitiva da Igreja.

Minha intenção é buscar reler os Atos dos Apóstolos de forma mais realista, e realismo não implica falta de fé, mas sim maturidade para discernir os movimentos humanos em torno da mensagem e da missão de Jesus. Comecemos pelo capítulo 1.


Capitulo I – A missão e o Reino


O primeiro capítulo de Atos já trata do comissionamento dos apóstolos para uma missão especial, passando a ensinar sobre o Reino de Deus durante quarenta dias após sua ressurreição e sobre a necessidade de uma capacitação especial do Espírito Santo para o exercício da missão (1:1-4). A equação “missão + poder do Espírito = Reino de Deus” é o grande tema do livro de Atos.

Infelizmente Lucas não se propôs a falar sobre os ensinos do Jesus Ressurreto, que provavelmente tinha um caráter especial. Porém, a história dos discípulos no caminho de Emaús, narrada no evangelho, nos dá uma pista de que o provável ensino de Jesus era sobre como as profecias messiânicas encontraram cumprimento em Jesus e como está sendo instituído o Reino de Deus. Mas entre o que Jesus ensinou; o que os apóstolos pregaram, e o que foi compreendido pelos conversos; existem certas diferenças importantíssimas a serem notadas, e tentaremos perceber tais diferenças com o decorrer da leitura do livro.

Uma das primeiras perguntas equivocadas já é feita neste capítulo. Depois de todos os ensinos de Jesus sobre a natureza e o caráter de seu Reino, ainda sim os discípulos perguntam sobre restauração do Reino Davídico em Israel (1:6). A resposta de Jesus é interessante:

E ele respondeu-lhes: Não compete a vós conhecer tempos e os momentos que o Pai fixou com sua própria autoridade. Mas recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria, e até aos confins da terra. (1:7-8)

O maior sonho da nação judaica era ter de volta sua autonomia política, com um herdeiro de Davi no trono. Na mente dos apóstolos esse herdeiro era Jesus, que já havia dado provas suficientes de que era o Messias. A ressurreição de Jesus encheu-os de coragem para lutar, mesmo que se entregando a morte, para que esse reino fosse inaugurado.

Mas Jesus não estava preocupado em dissolver este equívoco do pensamento apostólico. Fazer isso naquele momento da Igreja seria prematuro e causaria desânimo sobre os discípulos, pois querendo ou não, foi a esperança de um reino político iminente que impulsionou o grande movimento missionário que se viu na Igreja Primitiva.

Isso já ensina uma coisa importante sobre a Igreja: nem sempre caminhamos pelos motivos certos ou mesmo anunciamos com todo o discernimento sobre a vontade de Deus. Muitas vezes na história da Igreja a busca pelo poder temporal fascinou cristãos de tal forma a deturpar a mensagem do evangelho. O Reino de Israel (ou da Igreja) já tarda, e sendo assim, criamos meios para que de alguma forma a Igreja seja um reino também na esfera temporal.

Nós falamos muito que Jesus não veio ao mundo criar uma religião, e concordo plenamente com isso. Contudo, Jesus sabia que sua mensagem tocaria vidas e criaria ajuntamento de pessoas que confessariam uma mesma fé nele. Portanto, ajuntamentos humanos inevitavelmente exigem política, exercício do poder e relações (por muitas vezes complicadas) entre líderes e liderados. A preocupação de Cristo é que as disputas de poder dentro e fora dos grupos cristãos se fixassem como o alvo e a missão da nova Igreja. Para que isso não ocorresse, Jesus fixa uma missão e um poder que estão além da compreensão humana: o testemunho de Cristo no poder do Espírito.

De tal modo, mais do que se preocupar com política, poder, autonomia; Jesus afirma que o caminho a ser seguido é o do testemunho cristão. A missão que Jesus atribui a Igreja era uma forma de evitar que o grupo se perdesse em disputas que não eram dignas do caráter do reino. Anunciar e testemunhar eram os objetivos dos quais a Igreja não poderia se desviar, mas infelizmente a história mostra o contrário.

Acredito que a expectativa criada pelos apóstolos foi a seguinte: “Bem, vamos anunciar Jesus com todo nosso empenho, formando discípulos que farão parte do novo reino que ele irá inaugurar aqui em Jerusalém por ocasião da sua vinda. Vamos testemunhar, porém sem sair de Jerusalém, porque em breve Jesus virá tomar o reino das mãos de Herodes e será o nosso Rei”.

Essa mentalidade monárquica, provinciana e política do Reino de Deus manteve-se entre os primeiros discípulos, fortemente influenciados pela cosmovisão judaica, por muito tempo. Sendo assim, a primeira atitude do grupo apostólico foi a de preencher a vaga deixada por Judas Iscariotes para que o grupo de doze apóstolos pudesse iniciar sua missão evangelizadora.

Concluímos aqui percebendo que o ínicio da Igreja não foi isento de compreensões equivocadas. Apesar de todo o ensino e explanação de Cristo, os apóstolos ainda eram passiveis de interpretações falhas. Apesar disso, Jesus não busca logo repreender os discípulos, corrigindo-os quanto à real natureza do Reino de Deus, pois isso demandaria tempo e experiência. Algumas coisas são discernidas espiritualmente com o passar do tempo, na caminhada, e tal processo não está isento de erros. Mesmo que se faça por motivos errados, o Espírito Santo, que concede o poder para fazer, também concederá a capacidade para discernir, no momento certo, os reais motivos do testemunhar sobre Jesus no mundo.


Ah Senhor! Como precisamos nos nossos dias de discernimento.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A Dúvida que Tomé não teve (Pr. Elienai Jr.)



Gostaria de incluir aqui um texto maravilhoso do Pr. Elienai Jr. A forma tão leve com a qual ele fala de Tomé nos faz sermos identificados com este apóstolo em suas dúvidas sem com isso nos punirmos eternamente diante de Deus. Como foi dito, não tenhamos dúvidas no que toca ao viver a mensagem cristã. É sempre um prazer ter meu blog abrilhantado por textos tão qualificados e abencoadores como o do Pr. Elienai Jr.


Para quem quiser conhecer seu blog: elienaijr.wordpress.com


Preciso começar falando de mim. Sou um homem de muitas dúvidas. Sou alguém que duvida sempre. Por esta razão a história da minha fé é marcada por momentos de intenso e angustiante conflito. Conflitos comigo e com as estruturas de fé pelas quais fui educado. Foi na igreja da minha juventude que sempre ouvi coisas como: ele quer ser diferente de todos! Foi assim no seminário de onde terminei sendo convidado a me retirar, de tanto que duvidava. Também foi assim em casa com meus pais, mas confesso não precisar bem o que foi inquietação de adolescente em busca de afirmação e o que foram questões consistentes. Mas, em algum momento de minha vida, resolvi que uma fé que não sobrevivesse aos questionamentos e dúvidas não valeria a pena. Eu não a queria. Isso me rendeu uma aventura difícil na fé e no trabalho pastoral. O ambiente religioso, o que mais absorve meus engajamentos, não é permeável à dúvida. Ou seria mais bem dito, a dúvida torna o ambiente da religião desconfortável e, por isso, pouco profícuo para a experiência do culto?

Parafraseando Kierkegaard, na sua afirmação de que a angústia é a vertigem da liberdade, podemos dizer que a dúvida é a vertigem do pensamento. Vertigem é a sensação de insegurança de quem está em alta velocidade, ou em queda livre. É a sensação angustiante de quem não tem muito controle do desfecho dos acontecimentos. Assim é com o exercício racional. Não há pensamento sem a dúvida. Ela é a questão aflita que promove investigação e novas descobertas. Primeiro, desestabiliza o que já está estruturado e sobre o que calcamos nossas crenças, valores, projetos e esperança. Desestrutura a convicção que garante alguma segurança. Desestabiliza e por isso é desconfiança. Desconfiar que aquilo em que acreditávamos ser verdadeiro pode não ser é desconcertante sempre, mas é o único ponto de partida para as mudanças, ou mesmo para o amadurecimento de antigas compreensões. Suficientemente angustiados, obrigamo-nos à aventura de descobrir, reinventar, ressignificar, de viver, portanto. A dúvida é a sensação vertiginosa que confirma nossa humanidade. Porque é constituinte da nossa humanidade o pensamento e do pensamento, a dúvida.

Apesar de o ambiente protestante ser avesso à dúvida, mais, talvez, que qualquer outro ambiente, nosso conceito de conversão é seu devedor confesso. O indivíduo que se converte é com freqüência alguém que duvida radicalmente de sua própria história. De suas crenças, de suas ambições, de seus valores, de suas relações, de sua moralidade, de tudo o que lhe confere significado. A abertura do converso à mudança deve-se à instabilidade insustentável com que vinha vivendo. A proposta cristã é uma resposta que só cabe dentro de uma grande dúvida existencial. Na conversão, a dúvida é tão radical que o transforma em um discípulo completamente entregue à nova compreensão. Abandona o mundo não protestante para se deixar conduzir ao mundo protestante. Certo e errado. Bom ou mau. Divino ou diabólico. Belo ou feio. Tudo será reaprendido na proporção do estrago causado por sua dúvida inicial.

Quanto maior a crise que potencializou a conversão maior será a capacidade do novo crente de absorver o novo modelo de vida. Não por acaso tornam-se pastores com paixão destacada aqueles que experimentaram rupturas radicais em suas histórias, como os que viveram na marginalidade das drogas. Não nos esqueçamos, então, que a intensidade do envolvimento dessas pessoas é devedora, às avessas, de suas histórias duvidosas. Talvez, por isso, ao explicar a extravagância da mulher que chorou aos seus pés, enxugou-os com os cabelos e depois o perfumou com ungüento caríssimo trazido em alabastro, Jesus tenha contado a parábola dos devedores perdoados por seu credor. A pergunta embaraçosa foi: quem desses devedores mais ama? A resposta é tão evidente quanto escandalosa: aquele a quem mais foi perdoado.[1]

Apesar disso, é o ambiente da fé, o que mais foi beneficiado pelas dúvidas radicais de seus conversos, o que mais milita contra a manifestação da dúvida na jornada comum dos crentes. A dúvida que fragilizou o candidato à conversão e, por isso, fez-se a grande oportunidade para a nova fé, é agora a maior inimiga. A dúvida perde a posição de amiga do evangelho para tornar-se sua mais diabólica adversária.

Desenvolveu-se no ambiente da fé a idéia de que a dúvida é um fenômeno de segunda classe da espiritualidade. Isto quando não a tratam como demoníaca. Crente que duvida é visto com desconfiança. Não nasceu de novo. Ainda não teve uma experiência com o poder de Deus. É um crente fraco e sem valor! Precisa orar mais e estudar menos. Precisa construir mais e questionar menos. Precisa ler mais Bíblia que filosofia. Precisa ser mais crente.

Dentro dessa concepção de que a dúvida é má, um dos discípulos de Jesus passou a ser cruelmente maltratado pelo imaginário cristão: Tomé. Seu nome virou xingamento religioso. Chamar alguém de Tomé é chamá-lo de encrenqueiro, estraga prazer, carnal, raso, imaturo. – ‘Você é um Tomé’ significa: Cala a boca! Que você está atrapalhando a festa, está acabando com o clima! Ou então, você precisa se converter!

Faz algum tempo que tenho desgostado do tratamento dado a Tomé. Não me faz bem vê-lo relegado ao segundo plano, segunda categoria de discípulo. Não consigo vê-lo desta forma. Talvez porque me identifique com ele. Sinto-me muito mais próximo de Tomé e suas dúvidas, repleto de imagens de fraqueza e humanidade, que de Pedro e seus arroubos de fé, cheio de falsas onipotências. Mas também não pretendo promover um concurso do que vejo e avalio nos discípulos de Jesus. Acredito que em cada personagem bíblica somos apresentados aos nossos valores e desvalores, luzes e sombras, ímpetos e medos. Meu convite a você é para se aproximar com mais cuidado de Tomé e, quem sabe, descobrir ao meu lado o valor de suas dúvidas.

João é o responsável em sua narrativa pelo que podemos saber sobre o nosso amigo inquiridor. Há muito pouco, mas o bastante para arriscarmos algumas compreensões preciosas. A narrativa cuja interpretação descuidada transformou Tomé no protótipo do crente inconveniente está no final do evangelho de João.[2]

Fim de tarde de um domingo ainda sombrio. São três dias desde que o nervosismo dos donos do poder descambou na morte de Jesus. O mundo virou do avesso. Deu tudo errado. Todos se dispersaram. Pedro não anda nada bem. Não pode ouvir um galo que chora em desmantelo. Todos cabisbaixos. Tomé foi dar uma volta, mas os demais discípulos permaneceram trancafiados na casa de um amigo em comum. Não dá para fingir, só as mulheres tiveram coragem de sair de casa logo cedo e, de tão histéricas, dizem terem visto o sepulcro vazio. Maria Madalena vai mais longe, afirma que Jesus falou pessoalmente com ela. Tudo muito embaçado. João tem uma cara de que acredita na versão das mulheres para o sumiço do corpo. Quem sabe?
É preciso que se diga que o medo de que qualquer um seja o próximo a morrer paralisa. Mas o indubitável acontece. Jesus aparece dentro da casa. Não dá para negar. Sua voz tem um timbre feliz inconfundível. Ele sugere que o medo dê lugar à paz. Mas não somente, convida para o toque. Suas mãos têm as marcas da cruz. Por um instante os olhos marejados dos discípulos ficam vagos, passeiam na memória sofrida dos pregos cravando os pulsos. A lança atravessando seu corpo. Mas essas lembranças logo se dissolvem na surpreendente presença do amigo. E Tomé? Não está aqui. Diremos para ele. Ele não vai acreditar...

Tomé chega em casa apressado e tenso. Estranha as janelas abertas e a porta apenas encostada. Questiona o descuido, mas se assusta com os semblantes descontraídos. Todos falam ao mesmo tempo. Maria não é tão histérica quanto pensamos. Bem que João tinha razão. Jesus está mesmo vivo. Nós tocamos nele, Tomé. Suas mãos têm as marcas das feridas. Não há dúvida. Tomé pede para que se acalmem. Não consegue se empolgar com os depoimentos. Imediatamente é repreendido pelo olhar inconformado de todos. Como pode ser tão desconfiado. Se todos crêem, como pode duvidar? A dúvida coletiva é certeza consentida. Mas a dúvida que difere da comunidade, é incredulidade incômoda, herege. Mas Tomé não abre mão de também tocar no corpo que todos dizem ter tocado.

O retorno de Jesus pela segunda vez faz o primeiro parecer apenas o ensaio para o espetáculo decisivo. Perdoe-me a predileção por Tomé. Mas parece até que Jesus reeditou a entrada na casa somente por Tomé e sua dúvida atrevida. Tomé tem os olhos arregalados. A presença do Cristo tão desejada sublima tudo o mais. A fala parece decorada. Paz. Toque, Tomé. Jesus parece estar dizendo com os olhos que veio só para ele. Corpo tocado, voz ouvida, fé devolvida. Dúvida satisfeita. Poucas palavras. Senhor meu e Deus meu.

Não vejo Jesus censurando Tomé aqui. Também não o vejo dando uma bronca em Tomé. Não se livra nem de quem duvida, nem de sua dúvida. Ao contrário, aproxima-se dele o suficiente para dar à sua dúvida a importância devida. Mesmo sendo a dúvida mais preguiçosa, a última, a mais adiada. O único aspecto negativo da dúvida de Tomé, aparentemente, foi o da revelação que Jesus faz de que não duvidar é uma condição bem mais tranqüila que a de duvidar: “Porque me viu, você creu? Felizes os que não viram e creram”. Mas sobre isso há outras coisas a considerar.

Na verdade, a dúvida de Tomé alimentou o nosso cristianismo com verdades lindas. Basta um olhar retrospectivo na narrativa de João. Certa vez, depois de Jesus afirmar que os discípulos não precisavam ficar preocupados com sua morte, pois sabiam o caminho para onde ele ia, Tomé apresentou a sua dúvida da forma mais estraga-prazer possível: “Senhor, não sabemos para onde vais; como então podemos saber o caminho?”[3] A resposta de Jesus é uma pérola do evangelho: “Respondeu Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. Se vocês realmente me conhecessem, conheceriam também o meu Pai. Já agora vocês o conhecem e o têm visto”.

E como já foi dito, a única aparente repreensão de Jesus à dúvida de Tomé é muito mais uma promessa de que o testemunho dos apóstolos teria êxito: “Então Jesus lhe disse: “Porque me viu, você creu? Felizes os que não viram e creram”. Uma referência provável ao fato de que muitos iriam crer apenas pelo testemunho dos apóstolos.

Mas com Tomé nós descobrimos que podemos duvidar de muita coisa, mas há algumas coisas das quais não precisamos duvidar. Tomé nos ensina que é possível duvidar de tudo sem duvidar de sua própria fidelidade. Em outra narrativa de João, aprendemos de novo com Tomé. [4] Mesmo sem entender boa parte das coisas que Jesus falava e fazia, mostrou ter uma disposição radical de não dar as costas a Jesus. Mostrou-se mais fiel que crente.

Jesus tinha amigos muito especiais em Betânia. Eram três irmãos, Marta, Maria e Lázaro. Este adoecera mortalmente. Jesus que já curara tanta gente com quem não tinha nenhum laço afetivo, agora estava longe dos amigos. Avisado da morte do amigo, demorou ainda dois dias para reunir os discípulos e tomar as providências da viagem. Logo foi advertido de que a última passagem pela Judéia fora desastrosa. Há risco de morte. Mas Jesus despreza o risco sem desmentir a viagem temerária. Avisa que Lázaro está dormindo e de que vai acordá-lo. Falava de ressurreição. Mas ninguém estava entendendo a conversa de Jesus sobre Lázaro não estar morto, mas dormindo, mesmo todos sabendo de que já ele havia morrido. Todos discordavam da idéia de Jesus de volta à Judéia. O texto sugere que havia séria resistência entre os discípulos em acompanhar Jesus. Quando entra em cena Tomé. Também duvidando e apesar disso, estava disposto a não abandonar Jesus. Tomé só tinha uma convicção, todos morreriam. E ele estava disposto a morrer com Jesus. Suas palavras não são uma expressão de otimismo, mas de amor fiel: “Vamos também para morrermos com ele”.

Tomé mostra-se mais fiel que crente. Sua fidelidade era maior que seu otimismo. Sua capacidade de ser fiel era mais forte que sua capacidade de crer. Descobrimos com Tomé que é mais importante ser fiel que acreditar. É mais importante obedecer que ter fé. O que dá todo sentido ao que Jesus declarou serem suas grandes expectativas sobre os discípulos. Não eram de grandes e heróicos atos de fé, mas em atrevidos atos de amor: “Se vocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor, assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor permaneço.”[5]

Recentemente ouvi alguém justificando a vocação ministerial de uma pessoa questionável. Dizia que apesar dele ser um mau caráter, Deus o usava muito porque era um homem de fé. Aí eu me lembrei de certo político paulistano, sobre quem se dizia algo parecido: “rouba, mas faz.” Esta não é a lógica do Reino: é infiel, mas tem fé. Jesus esvazia esta lógica: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?’ Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!”[6]
Chego a pensar que a neurose protestante com as dúvidas tem gerado a pior dúvida: a dúvida da integridade. Tomé não duvidou de sua integridade. Há uma dose atrevida de integridade em sua dúvida. É preciso repetir, todos duvidaram. A casa caiu para Tomé porque duvidou contra todos. A interpretação que damos à dúvida de Tomé é devassadora porque enxergamos na sua dúvida o que mais tememos: alguém duvidar do que todos não mais duvidam. É a dúvida do herege. É necessário olhar de novo.

Todos os demais discípulos estavam com medo. “Ao cair da tarde daquele primeiro dia da semana, estando os discípulos reunidos a portas trancadas, por medo dos judeus”. Todos os demais discípulos somente creram quando viram Jesus e as marcas da crucificação. “Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos alegraram-se quando viram o Senhor”. Todos os demais discípulos duvidaram do testemunho das mulheres de que o sepulcro estava vazio e Jesus, vivo. (Lc 24.11) “Mas eles não acreditaram nas mulheres; as palavras delas lhes pareciam loucura.” Apenas Tomé duvidou quando todos não mais duvidavam. Apenas Tomé colocou em questão o discurso já aceito por todos “Se eu não vir as marcas dos pregos nas suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”. E Tomé não é condenado por agir assim. Quem o condenou? Os demais discípulos? De forma alguma e em momento algum. Talvez porque ainda não existisse uma estrutura de poder construída em torno da fé. Quem condenou Tomé foi a (des) leitura religiosa do texto. Nossas estruturas religiosas têm muito que defender. A instituição não pode ser desestabilizada pela dúvida já superada. A dúvida teimosa é heresia. Nós condenamos Tomé. Por nossa causa Tomé é rejeitado. Por causa da estabilidade de nosso discurso é que assimilamos e propagamos a visão dominante que faz de Tomé um crente sem valor e nele, todo o que duvida. Mas não é assim que a narrativa enxerga nem Tomé nem os demais.

A dúvida de Tomé é uma manifestação de integridade que não pode ser desperdiçada pelo autor de nossa fé. Ele volta para Tomé e faz parecer apenas ensaio tudo o que já aconteceu. O Reino de Deus é de Tomé, de quem tem coragem para não se deixar corromper pelo medo da dúvida teimosa, da dúvida do herege.

Não se deixou amputar em sua dúvida como parte preciosa de sua fé. Mas também a sua dúvida o conduziu a superar qualquer dúvida sobre o que mais importa na fé em Cristo, a dúvida do amor. Tomé não duvidou do quanto Deus estava ocupado com suas angústias. A grande verdade de Tomé foi internalizada. Sua grande verdade foi o amor que toca mais que discursa.

A cena é constrangedora. Jesus não tinha necessidade de ser acreditado. A crença de Tomé nada acrescentaria à ressurreição de Jesus. No entanto, Jesus não apenas volta como se sujeita à dúvida de Tomé. Convida-o para tocar nas marcas de sua maior humilhação. Expôs para Tomé, para tirá-lo da dúvida, as marcas de suas dores e fraqueza. Humilhou-se à baixeza das exigências de quem duvida.

Mais, o texto sugere que Jesus volta com uma única missão: visitar Tomé em sua dúvida. A dúvida de Tomé é dona da agenda de Jesus para aquele dia. Na primeira vez que Jesus visita os discípulos, Tomé não estava lá. Ele volta e João dá a entender que o faz apenas para servir Tomé nas exigências sofridas de seu coração aflito. Diante de tão grave gesto de amor, Tomé só consegue dizer uma coisa: “Senhor meu e Deus meu!”.

Muitas vezes eu desperdicei oportunidades de amar meus filhos. A menina se feriu fazendo algo que estava proibido. Ao invés de simplesmente acolher e amar, ocupei-me, irritado, de tão obcecado em ter razão, ou de apenas em me livrar de uma falsa culpa, ou em ser justo, ou ainda, bem sucedido na educação, em derramar broncas e lições de moral. Como me arrependo de ter agido assim tantas vezes. Acho que aprendi a lição. Deus não faz assim. O momento do ferido é apenas o momento de amar. É como faz com Tomé. Como anunciado por Isaías: “Eis o meu servo, a quem sustento, o meu escolhido, em quem tenho prazer. Porei nele o meu Espírito, e ele trará justiça às nações. Não gritará nem clamará,nem erguerá a voz nas ruas. Não quebrará o caniço rachado, e não apagará o pavio fumegante. Com fidelidade fará justiça.” [7]
A dúvida em Tomé é um convite a não desperdiçarmos nossas questões, nem as mais aflitas. Vertigens de nossa humanidade. Manifestações da nossa maior verdade, a verdade de sermos e não a de sabermos. Janelas que escancaram nossa alma para a brisa libertadora do amor de Deus. Que só é amor porque somos tão livres quanto imprecisos.

[1] Lucas 7.36-50
[2] João 20.19-29.
[3] João 14.5
[4] João 11.6-16
[5] Jo 15.10
[6] Mt 7.21-23
[7] Is 42.1-3

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Contra frutos não há argumentos! Mt 7:24-27


No decorrer do Sermão da Montanha, podemos perceber claramente que Jesus ensina pelo menos três metáforas comparativas em seu discurso:

Primeiramente ele fala da porta estreita em oposição à porta larga, uma metáfora relacionada à forma como trilhamos nossa vida no chão dessa existência. Aqui é importante entender que Jesus está falando sobre tomar decisões que são geralmente impopulares, mas que são necessárias para que possamos seguir à caminho da verdadeira vida. Sendo assim, a primeira comparação de Jesus neste sermão fala sobre o inicio da vida cristã, sobre as primeiras decisões que nos conduzirão a caminhos diametralmente diferentes.

Se a metáfora da “porta larga e estreita” fala sobre o ínicio da caminhada, a metáfora seguinte, sobre a “árvore boa e os frutos bons” versus “árvore má e frutos maus”, fala sobre desenvolvimento provindo de nossas escolhas. Falar sobre árvores e frutos e falar sobre o nível de comprometimento que nossa vida estabeleceu com o ensino de Jesus e no que esse comprometimento tem resultado em nós. Jesus está falando que qualquer seja a porta que escolhamos seguir, durante o caminhar criaremos raízes que nos tornarão cada vez mais identificados com a escolha que fizemos. Sendo assim, o fruto que geramos revelará ou não o quanto nos aprofundamos na vida segundo a vontade de Deus. Recriando o velho ditado, Jesus diz que “contra frutos não há argumentos!”

Portanto, a metáfora do prudente e do insensato, é a terceira devido à seqüência lógica do próprio texto. Se a primeira metáfora refere-se à origem de nossa vida, e a segunda refere-se ao desenrolar das conseqüências de nossas decisões; a terceira metáfora falará para nós sobre o estado final de nossa alma diante do desenrolar da vida que se impõe sobre nós.

Note que o texto fala de construir no passado, ou seja, ele já está alicerçado em uma forma de viver que foi estabelecida de acordo com suas decisões e posturas. Nessa metáfora o ser humano já tem caminhado e também já tem frutificado de acordo com suas escolhas. Porém, diante das tragédias e calamidades que a vida impõe a todos, para uns será apenas mais um momento ruim a ser superado, mas para outros será o próprio apocalipse, o juízo final se abatendo sobre suas vidas.

Essa seqüência de parábolas tão ricas me ensina pelo menos duas coisas importantes sobre a vida cristã:

1. O verdadeiro cristão sempre irá se deparar com momentos de escolhas difíceis, e tais escolhas serão como fertilizantes que darão frutos ao seu tempo. Tenhamos discernimento em nossas escolhas e assim estaremos contribuindo para que nossos frutos sejam espelhos do caráter de Cristo em nós.

2. O verdadeiro cristão reconhecerá que sua vida não é privilegiada por Deus. Ele vive em mundo onde as tempestades não fazem distinção entre a casa do ímpio e do justo. O diferencial do servo de Deus não é sua capacidade de controlar a vida e suas intempéries através do sobrenatural, mas sua capacidade interior de se manter íntegro na presença de Deus seja qual for a situação. Ser integro aqui não significa fingir que dor do dia mal não é sentida por nós, mas mesmo em toda dor existe um processo de renovação da esperança em nós que não permite que a dor mate nossa fé e destrua nossa relação com Deus forjada no caminho e nos seus frutos.

O cristão entra pela porta da vida (seja ela larga ou estreita) através de suas escolhas, seguindo o caminho (seja ele largo ou estreito) ele produz frutos de acordo com a qualidade da terra que pisa (seja ela boa ou ruim). Pela qualidade da terra e pelo nível de aprofundamento de suas raízes, ele já possuirá alicerce (seja ele rochoso ou arenoso) para se manter firme na tempestade ou desmoronar sem a mínima consistência, fruto de sua própria inconsistência na palavra e no agir segundo a vontade de Deus.

Como diz Jesus: “contra frutos não há argumentos!”.

sábado, 10 de novembro de 2007

Cristianismo e movimento - Atos 11:19-26


Desculpe-me os estudiosos, que com certeza terão mais propriedade do que eu para fazerem tais afirmações que pretendo aqui. Sei que essa tentativa de situar o surgimento do Cristianismo no mundo é deveras complicado e sempre controverso.

Porém, em minha humilde compreensão, gosto de pensar que o evento fundador do Cristianismo (refiro-me nesse texto ao cristianismo como um movimento baseado nos ensinos de Jesus, e não a instituição político-religiosa fundada por Constantino séculos mais tarde) foi narrado por Lucas nessas poucas linhas do livro de Atos: o surgimento da Igreja de Antioquia.

O nascimento dessa igreja marca de vez o próprio surgimento do Cristianismo. Sei que vários eventos anteriores, como por exemplo, a conversão e o batismo de Cornélio, são sinais de um movimento que possa ser chamado Cristão. Contudo, Antioquia seria o auge de tudo o que já estava acontecendo por intermédio do Espírito Santo sobre os discípulos.

Vejamos algumas informações dadas por Lucas que nos chamam a atenção:


1) Lucas associa o surgimento dos Cristãos ao evento anterior do Martírio de Estevão. Não desejo aqui afirmar que Estevão foi assassinado para que de alguma forma a igreja saísse de seu comodismo, e nem Lucas parece ter tal pretensão. O autor apenas expõe que esse evento ruim gerou uma benção maior para os discípulos, explicitando assim a capacidade de Deus de conduzir nossa história revertendo tragédias em oportunidades de abençoarmos e sermos abençoados. A grande migração missionária surgiu após o martírio de Estevão e fez com que o Evangelho saísse de seu casulo judaico e alcançasse assim outros povos. Entenda aqui o cristianismo como movimento, e não como instituição estática.

2) Apesar das mudanças geográficas, os discípulos não haviam ainda feito a sua “migração espiritual”. Eles saem de Jerusalém, mas o evangelho dentro deles ainda não é a mensagem universal Deus. Os seguidores do Nazareno estavam transformando-se numa seita com traços exclusivistas semelhantes ao dos seus perseguidores, os fariseus. A saída precisava ser não só do território de Jerusalém, mas também dos paradigmas limitadores que impomos à mensagem ilimitada de Jesus. Entenda aqui o cristianismo como mensagem universal, que quebra qualquer limitação. O verdadeiro cristianismo é sempre um movimento de morte (simbolizado em Estevão, uma figura do próprio Jesus) e partida (para fora do mundo convencional que criamos).

3) Os cipriotas e cireneus (var. Judeus Helenistas) são os que encarnam essa verdade universal do evangelho. Se não há entre nós pessoas inovadoras como esses helenistas, não há cristianismo verdadeiro. Se não há entre nós aqueles que conseguem enxergar que o horizonte que ainda não é o limite, então não há boa nova de Jesus na Igreja, por que esta é essencialmente universal. Ser um helenista é ser alguém que não só fala do evangelho a seus pares, mas que também consegue comunicar a mensagem de forma compreensível a cada cultura. O texto de Lucas diz que os helenistas anunciaram aos gregos (ou seja, os incircuncisos) a boa nova do “Senhor Jesus”. Se notarmos, eles não chamam Jesus de Cristo, mas de Senhor, que é uma característica messiânica mais compreensiva a mente grega. De tal forma, quando os discípulos são chamados de cristãos, significa dizer que "Cristo”, para os gentios, não era um título judaico, mas o nome próprio de Jesus. Sendo assim, o cristianismo não é só universal, mas também contextual.

4) A Igreja não é só resultado da ação de lideres, sacerdotes (alto clero), mas sua beleza está em ser um movimento que inclui a todos como agentes da anunciação da mensagem de reconciliação. Na história de Antioquia, os lideres mandaram um “avalista” quando a Igreja gentílica já havia tomado uma visibilidade notável. Quem fez a Igreja e o Cristianismo foram os leigos, aqueles que tiveram apenas a iniciativa, independente de títulos ou honras. Lucas não descreve a visita de nenhum grande apóstolo, uma figura notável, ou coisa do tipo; apenas revela que praticamente dois pequenos obreiros (Barnabé e Paulo) cresceram junto com a Igreja através da exortação e do ensino, de tal forma que foram capacitados para serem apóstolos para o mundo que ainda não conhecia a mensagem de Jesus. O cristianismo não é só um movimento expansivo, universal, revolucionário, contextual, mas também inclusivo.


Isso é a essência do verdadeiro Cristianismo, um movimento que é verdadeiro filho do Evangelho, que rompe os paradigmas impostos, que não se enclausura ou se embriaga com o poder. Um movimento onde tudo começa apenas da iniciativa do coração, inclusive dos pequenos, dos leigos, onde não há imposição hierárquica, mas as lideranças são forjadas no viver em comunidade. Leigos que falam da mensagem de forma que seu irmão compreenda na sua cultura. Um movimento do serviço com prontidão de coração.

Esse é o cristianismo primitivo, e qualquer dessemelhança com o cristianismo moderno, infelizmente, não é mera coincidência ou produto do acaso.

domingo, 4 de novembro de 2007

Nascer e morrer nos processos de partida

"Quero manter minha mente fértil para as mudanças, de modo que as coisas continuem nascendo em mim, de modo que as coisas continuem a morrer quando chegar a hora de morrer. Quero continuar a me afastar da pessoa que eu era um instante antes, porque a mente existe para descobrir coisas, nao para ler a mesma página recorrentemente".
Trecho da introdução do livro Fé em Deus e Pé na Tábua, de Donald Miller, Thomas Nelson Brasil.