sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

CONTRA ESSAS COISAS NÃO HÁ LEI (GL 5:23) - REFLEXÕES SOBRE AS OBRAS DA CARNE E FRUTO DO ESPÍRITO

A carta aos Gálatas é uma tentativa calorosa de Paulo em defender o movimento cristão primitivo contra qualquer “adulteração” da sua mensagem. Contudo, não somente apologética; esta epístola testemunha sobre uma igreja nascente que busca construir sua própria identidade.

A grande ameaça para que isso ocorra é a confusão que estava se dando, não só na igreja da Galácia, mas em outras localidades também: Em Jesus Cristo o homem ainda precisa da lei para tornar-se agradável a Deus, aceito por Deus? Dependendo de como essa pergunta fosse respondida, a comunidade cristã poderia estar caindo na armadilha judaica, sendo assim incorporada a velha ordem dos judeus legalistas.

Sendo assim, o apóstolo tenta mostrar os fundamentos da graça segundo a obra de Cristo. A lógica é mostrar que a lei não gerou salvação aos homens, não lhes transformou o caráter. Já em Cristo, qualquer necessidade de agradar a Deus para que ele nos aceite, está satisfeita no próprio Jesus, e este benefício angariado pelo Messias é estendido a todos aqueles que por fé aguardam a justiça vindoura de Deus.

Paulo chega a essa conclusão no capítulo 5, quando diz: “Porque nós, pelo Espírito, aguardamos a esperança da justiça que provém da fé. Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua pelo amor” (vs. 5-6). Ou seja: Não há lei que possa dar ao homem valor aos olhos de Deus, apenas a fé que atua pelo amor.

Essa última frase é importante para que compreendamos que Paulo não fala de uma vida irresponsável e sem limites. Os legalistas costumam sempre a pensar que o único antídoto que impede a devassidão completa das pessoas é a lei, os mandamentos, as proibições divinas. Sem elas, pensam eles, os crentes logo se desviarão do caminho pelos motivos mais torpes e vis.

Mas para Paulo, a fé que nos liberta da lei não é libertina, mas tem o amor como o fio condutor de uma vida segundo a graça de Cristo. É a “lei” do amor que “ditas as regras” daquele que é salvo por graça e fé.

De tal forma, não é de se espantar que Paulo relacione a lei do amor com a comunhão, à servidão ao próximo em gratidão a Deus. O cuidado com o próximo, com a comunhão, o amor que alcança aquele que está do lado; este sim é o sinal visível que demonstra a fé que vem da graça.

Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo (vs.14).

Na minha humilde compreensão, acredito que sem a compreensão da graça e do serviço cristão é impossível compreendermos a “lista de pecados” que Paulo descreve, assim também como a “lista das virtudes” que devem habitar o coração. Ambas, pecados e virtudes; estão de alguma forma relacionadas ao mandamento do amor em Cristo, e não se resume apenas a uma lista de como perder ou ganhar o céu. Seria insensato de nossa parte supormos que Paulo estava dando um novo mandamento sobre o que devemos ou não fazer para agradar Deus, caso contrário estaria caindo no erro que ele mesmo condenou.

Não é essa a intenção da lista de obras da carne e fruto do Espírito. Não há outro objetivo senão apenas o de mostrar que a graça, agindo pela fé e pelo amor, segue uma trilha que é construída pelo Espírito Santo revelado no fruto em minhas atitudes. Os que seguem a lei não conseguem livrar-se das terríveis obras da carne, e não será somente o ritual externo que irá torná-los menos libertinos do que aqueles que não possuem lei.

Vejamos como cada obra da carne e cada qualidade do fruto espiritual estão de alguma forma ligada à comunhão, ao amor ao próximo e ao serviço. As obras da carne exemplificam como a nossa natureza caída segue contra a lei áurea de Jesus. Já o fruto do Espírito é a tipologia pratica de como o agir de Deus nos leva a sermos mais compromissados com a vontade de Cristo.

As obras da carne são:

Pornéia – Paulo começa a “lista” com o pecado de prostituição. Se o apóstolo estava falando de amor entre irmãos, o mesmo sabia que o nobre sentimento ágape poderia ser maculado com a prática de Pornéia. A prostituição poderia ameaçar grandemente as relações dentro da comunidade e forma como os cristãos iriam expressar sua adoração, já que de certa forma a adoração judaica estava sendo abandonada pela nova seita.
Pornéia estava ligada a Eidololatria, a prostituição era uma forma de adoração aos deuses. Não era simplesmente uma “atividade econômica”, uma troca de prazer por dinheiro. A prostituição era também uma atividade religiosa amplamente praticada no mundo antigo.
A prostituição, nos tempos de Paulo, não era considerada uma falta moral, mas ao contrário, era amplamente incentivada pela cultura antiga e era financiada pelo Estado greco-romano. Havia uma ligação tríplice entre Prostituição, Religião e Estado; um sistema cultural fortemente arraigado na mentalidade dos gentios.
Esse cenário nos leva a supor porque Paulo começa sua “lista” por Pornéia. Tal pecado logo deturparia as relações dentro da comunidade cristã. Se a lei judaica proibia a Pornéia na congregação, porém Paulo estava afirmando a inutilidade da Lei na nova relação com Deus; então seria fácil para o gentio, culturalmente adaptado a prostituição, vir a inseri-la na Igreja.
A proibição a Pornéia era justamente uma forma de resguardar as relações sadias na comunidade, além de tentar proteger a adoração cristã das influências do culto pagão. Todas as relações que fazem do outro um objeto, tirando-lhe a dignidade humana, está incluída na proibição paulina. Ela vai diretamente contra a lei de amar o próximo como a si mesmo, isso sem falar os danos psicológicos causados pela pratica da Pornéia, um desrespeito generalizado ao valor da vida humana.

Akarthasia – O termo usado por Paulo para impureza vem da própria sujeira material, porém o uso dela passou a ser direcionado para a impureza religiosa e moral. Akarthasia é um estado de depravação interior que se reflete nas ações libertinas, que desrespeitam o próximo e impedem qualquer relação sadia. Tal condição interior também torna o homem impuro perante Deus. Esta palavra foi aplicada na LXX para descrever as impurezas cerimoniais que impediam os judeus de oferecerem sacrifício e adoração no Templo. Akarthasia leva diretamente a Aselgeia.

Aselgeia – Traduzida por libertinagem, a Aselgeia é uma paixão, um vicio desenfreado pelo pecado. Tal pessoa chega a um estado em que sua consciência e a moral vigente já não lhe importam mais, extrapolando qualquer limite de decência. Tal pessoa não suporta a disciplina e a correção, assim como mantém um completo desrespeito e indiferença aos direitos dos outros. Enquanto Akarthasia geralmente se refere a um estado mental, Aselgeia implica diretamente em atitudes que ferem toda a comunidade e prejudicam a verdadeira comunhão.

Eidololatria – Como já foi dito, não dá para pensar em idolatria no mundo de Paulo sem associá-la à prostituição. Porém, não é somente a prostituição que impede a idolatria. Ligada à prostituição estava o culto ao imperador, ou seja, a adoração da criatura, que Paulo reprova no capítulo 1º de Romanos. A idolatria é um terrível desvio na verdadeira adoração que o homem deve prestar a Deus.
A graça, tão defendida por Paulo na carta aos Gálatas, também é ameaçada pela idolatria. A relação entre o idolatra e o seu deus está baseada geralmente na troca de favores, na barganha com o divino. Sendo assim, o idólatra não vive segundo a graça, o favor imerecido de Deus, mas segundo a lei da troca, que está embutida no próprio sentido dos mandamentos legalistas. Ou seja, na medida em que minha relação com Deus está fundamentada na troca, na adoração por favores, estou me afastando do Deus vivo e criando para mim um ídolo com o mesmo nome.
Seguindo esse raciocínio, o ídolo nasce de um sentimento egoísta. É interessante observar que as guerras mitológicas entre os deuses eram na verdade representações das inimizades e ódios entre os humanos. Existe um traço evolutivo na idolatria ao longo dos séculos, onde os povos passam do culto aos deuses que representavam as forças da natureza e os seres da criação, e vão se adaptando ao culto ao Estado e ao Imperador. O que não seria a adoração ao imperador do que a representação da auto-idolatria da humanidade, adorando seus próprios líderes e os feitos do Império.
Esse tipo de idolatria já ameaçava grandemente a comunhão na Igreja de Corinto (1Co 1). Paulo já começa a carta rebatendo a atitude idolatra dos crentes dessa igreja, que adoravam aqueles que simplesmente serviam em nome de Jesus. Provavelmente seja essa faceta da idolatria que Paulo procurava evitar entre os Gálatas. A adesão desta igreja a lei geraria uma relação de barganha, completamente contraria ao projeto de espiritualidade de Jesus, e também fomentariam partidos e facções que destruiriam a comunhão entre os cristãos.

Farmakéia – Palavra usada nos primórdios para significar o uso de drogas com efeito medicinal, nos tempos de Paulo já possuíra outra conotação. Farmakéia é aplicada para a bruxaria e feitiçaria; abrangendo o uso não somente de ervas, mas também de toda sorte de artes mágicas ou evocação de espíritos malignos com o único intuito de matar ou causar danos irreparáveis a vida do outro. A feitiçaria engloba também a superstição e o uso de amuletos ou outras práticas que protejam as pessoas de uma má sorte. Juntamente com a prostituição cultual, a feitiçaria fazia parte não só da religião pagão como também era praticada de forma bem abrangente. Mágicos e feiticeiros de toda espécie era bastante comuns, e na verdade muitos cidadãos dedicavam-se a estudar artes mágicas e usa-las no dia a dia. No livro de Atos existe uma amostra bem vivida da feitiçaria como parte integrante da cultura grega, pois no trabalho de evangelização de Éfeso, muitos dos que creram eram praticantes de feitiçaria, mas ao crerem em Jesus abandonaram tal prática, queimando os livros de bruxaria em praça pública, uma fortuna calculada em 50.000 dracmas (At 19:18-20). A feitiçaria não tinha espaço na igreja justamente por ser usada como instrumento para causar males aos homens e por não representar o verdadeiro poder de Jesus.

CONTINUA...

2 comentários:

Italo Colares disse...

Olá amigo meu... que belo estudo este seu.... Gostei muito... principalmente da parte da pornea... este vc descreveu como ninguem.... heheheheheheheheh

Anderson Pedreira disse...

Bom dia, Eu só gostaria de fazer um comentário sobre aquilo a que você se referiu a Idolatria. No versiculo da carta de Paulo, ele fala de Idolatria referindo-se a palavra avareza, e não todas as palavras do versículo 5.

Ele diz conclui "...e a avareza, que é idolatria". Se procurar sobre avareza vai chegar a Inclinação, que tem haver com Idolatria. Portanto, avareza é idolatria, e não tudo o que é citado.

Obrcs.


Anderson S. Pedreira