sábado, 22 de dezembro de 2007

CONTRA ESSAS COISAS NÃO HÁ LEI (GL 5:23) - UMA REFLEXÃO SOBRE AS OBRAS DA CARNE E O FRUTO DO ESPÍRITO (Parte 2)

Continuando...

Echthra – Apesar de ser muitas vezes traduzida por ódio, ou inimizades, talvez a aplicação que Paulo queria dar a essa palavra esteja mais próximo do sinônimo de preconceito, ou um sentimento de superioridade perante os demais. Aqueles que são dominados pela Echthra consideram-se melhores do que uma determinada classe de pessoas, nutrindo assim um preconceito contra aqueles que não são “do mesmo porte”. Tal sentimento logo se traduz em hostilidades mútuas, violência e intolerância. O preconceituoso e hostil não consegue manter uma relação de irmandade com os demais, mas de inimizade com aqueles que segundo seu conceito são inferiores. Esse pecado é o contrário perfeito de Ágape, a primeira qualidade do fruto do Espírito listada por Paulo.

Eris – Nome dado à famosa deusa grega da contenda, Eris, na aplicação de Paulo, é um sentimento de exaltação própria tamanha que causa constante desentendimento entre as pessoas. Um indivíduo cheio de eris está sempre gerando contendo na igreja porque se considera o único portador da verdade, inteiramente certo em tudo que pensa e fala. Paulo cita que o caso de Corinto foi causado por Eris, pelo sentimento de superioridade que gerou grupos contenciosos e completamente desarmônicos (1Co 1). Esse é o sentido principal de Eris no contexto paulino: pessoas ou grupos que geram desarmonia ao corpo de Cristo.

Zelos e Fthonos – Nas relações humanas, zelos era comumente aplicada para o sentimento de ambição que acometia uma pessoa ao ver o sucesso do próximo. No grego secular, alguém possuído de zelos era alguém que lutava para chegar a ter o mesmo sucesso que seu irmão havia adquirido. Até esse ponto, Zelos era muito mais uma qualidade do que um defeito, seria o que chamamos hoje de “vontade de crescer”, uma busca pelo sucesso. Mas essa palavra logo evoluiu para um sentido negativo, sendo na Vulgata traduzida por homicídio. A intenção de Paulo, ao que parece, é evitar que as pessoas alimentem sentimentos de ambição pelo sucesso alheio, já que todas as vezes que a palavra Zelos ocorre na Bíblia, ela está acompanhada de Fthonos, que significa inveja daquilo que o amigo possui. Zelos rapidamente evolui para Fthonos, e tal inveja não é o desejo de ter aquilo que o amigo tem, não é simplesmente cobiçar os bens do seu irmão, mas é ficar amargurado pela conquista dele, é não desejar a felicidade do próximo em todos os sentidos. Uma pessoa cheia de Fthonos não quer ter a mesma alegria do seu irmão, mas quer que seu irmão seja tão infeliz quanto ele é.

Thumos – A melhor interpretação para Thumos seria um estado de ira irracional, porém passageira. Geralmente aplicada às pessoas de gênio explosivo, o chamado “pavio curto”, pessoas que se deixam dominar por impulsos violentos e sem o menor raciocínio. Representa um estado de ira que a pessoa se priva da consciência e age de forma irracional. Mesmo que após a ira a pessoa venha cair em si e se arrepender do que fez, geralmente alguém que possui Thumos é orgulho por “não levar desaforo pra casa” e também “por dizer tudo o que pensa” sem se preocupar se está ou não ofendendo o próximo.
A palavra Thumos também pode ser usada para um sentimento de indignação perante o mal e as injustiças. Sendo assim, o indivíduo se ira em favor daquele que está sento vítima do mal, e tal ira acaba por ser um instrumento de aplicação da justiça. Nesse sentido podemos entender o que Paulo quer dizer também em Éfesios 4:26 quando escreve: “Irai-vos, mas não pequeis”. A ira que produz justiça (obs: não compare ira com vingança, pois vingança não traz justiça) é bem vinda; mas toda ira que gera violência, provinda de sentimentos egoístas, é pecado listado entre as obra da carne.

Eritheia – Da mesma raiz de Eris, Eritheia é a conseqüência funesta de Eris. Poderia ser usada para no sentido de mercenário, aquele que trabalha unicamente visando o lucro, e também para facções, ou seja, um indivíduo ou partido que trabalha apenas para a manutenção dos seus próprios interesses e ambições pessoais. Aquele que está corrompido pela Eritheia não consegue decidir pelo bem comum, mas apenas em fazer aquilo que esteja de acordo com seus desejos.

Dichostasia – Essa é a qualidade do individuo que se afasta da comunidade por considerá-la totalmente errada e inadequada para ele. Tal pessoa, ou até mesmo grupos, evoluem a tal estado que já se esvaiu toda a possibilidade de comunhão e fraternidade, restando apenas a divisão. Dichostasia é o efeito natural produzido no meio de uma comunidade que foi invadida por Echthra, Eris e Eritheia, semelhante a um câncer que evolui chegando ao estado terminal do paciente.

Hairesis – o sentido hoje de heresia está limitado apenas ao uso teológico. O individuo herege é aquele que nutre pensamentos acerca de Deus que são contrários ao posicionamento vigente, adota pela maioria (ortodoxia). Porém, não era esse o sentido usual da palavra Hairesis, e a aplicação paulina também não se resume a isso.
Heresia no tempo de Paulo seria o mesmo que partidarismo nos nossos dias. Nome também usado no mundo antigo para denominar uma seita, não tinha o sentido pejorativo como aplicado hoje. Numa linguagem bem popular é o que chamaríamos de “panelinha”, ou seja, grupos que se alinham por certas afinidades, e que por isso, excluem os demais que não as possuem.
Ao repreender as divisões que aconteciam durante a Ceia do Senhor na igreja de Corinto, Paulo usa o termo hairesis para se referir aos grupos divididos que não esperavam uns pelos outros durante a festa. Se nossa piedade cristã nos separa daqueles que consideramos menores, então estamos incorrendo no pecado de hairesis, e esse é provavelmente o melhor sentido para ser aplicado a palavra no contexto das obras da carne.

Methê e Komos – Respectivamente significam bebedeiras e orgias. Muitos hoje desejam interpretar que a Bíblia proíbe o consumo de bebidas alcoólicas utilizando este texto de Gálatas entre outros. Porém, Methê representa um estado de embriaguez causado pelo abuso do álcool. O indivíduo cheio de Methê é aquele que extrapola o limite do prazer e causa vergonha não só para ele mesmo, como também para a comunidade em que vive. O vinho era uma bebida universal no mundo antigo. Tanto Jesus como os apóstolos bebiam vinho e o consumiam nas celebrações de Ceia. Paulo sugere a Timóteo que tome vinho para combater enfermidades do estômago (1Tm 5:23). Methê é o pecado do excesso do vinho, que gera outros problemas além de simples bebedeira, como violência, morte, divisão, ofensas, prostituição, e vários outros males que lhe acompanham.
A lógica e que após condenar a bebedeira, Paulo também venha proibir Komos, ou seja, as orgias. Apesar de no grego secular ela ter significado de festa, comemoração; nos tempos de Paulo ela era mais comum para celebrações, inclusive cerimônias religiosas onde era praticada a glutonaria, a bebedeira e a prostituição, tudo em homenagem aos deuses. As orgias dedicadas a Dionísio (grego) e a Baco (romanos) eram conhecidas de Paulo e seus contemporâneos. Muitas vezes as orgias também implicavam em sacrifícios humanos ofertados aos deuses e outros ritos estranhos e secretos.
Ambos, Methê e Komos, eram excessos do prazer saudável. O cristianismo não privava seus adeptos de fazerem festas e do consumo de bebidas, mas era incompatível ao espírito da mensagem e do mandamento de Cristo a prática que excedesse a moral e que causasse escândalo na comunidade. Nisto está implícito o ensino de Paulo que recomenda a abstinência caso meu comportamento possa causar escândalo ao irmão mais fraco (Rm 14:21, 1Co 8:9-13).
Percebamos que cada obra da carne são obstáculos concretos a adoração cristã, a vida segundo a graça e ao amor próximo. Cada uma das práticas condenadas por Paulo possui raízes no egoísmo e no orgulho, que são completamente antagônicas ao principio cristão do amor que inclui, renuncia e se humilha para o bem do outro. Paulo não está substituindo a lei judaica por uma lista de proibições cristã. Ele apenas expõe, através destes pecados que a nossa fé deve gerar um amor que alcance o próximo, que estenda graça aos outros como Jesus a estendeu para nós. Não é a pratica desses pecados que lhe leva ao inferno, é o que estava por trás de todas as suas motivações: o amor ou o egoísmo.

Continua...

Nenhum comentário: