domingo, 23 de dezembro de 2007

CONTRA ESSAS COISAS NÃO HÁ LEI (GL 5:23) - UMA REFLEXÃO SOBRE AS OBRAS DA CARNE E O FRUTO DO ESPÍRITO (Parte 3)

Continuando...

O Fruto do Espírito é um estado de quem se vê dominado pelo amor de Deus. Se eu pudesse reescrever o versículo, colocaria nesses termos: “Mas o fruto do Espírito é o amor, e com ele temos alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gl 5:22-23).
Só há o fruto do amor como resultado de uma vida pelo Espírito Santo, e esse amor, que está na base do mandamento de Cristo, traz consigo as demais qualidades enumeradas por Paulo. Crescer no Espírito é crescer no amor e suas conseqüências, dentre as quais as que o apóstolo enumerou logo após mencionou logo após.

Ágape – Este substantivo foi praticamente criado pela religião cristã para determinar o amor de Deus e de Jesus Cristo. Ágape descreve uma qualidade de amor completamente oposta a todas as formas humanas de manifestar tal sentimento.
Ágape é um tipo de amor que acima de tudo é inclusivo. Nele não há barreiras e pré-condicionamentos. Ágape é o amor que não necessita de barganha para ser concedido. Deus ama independente de haver ou não méritos por parte do objeto do seu amor. Ágape é o centro da Graça.
Sendo assim, a pessoa inundada pelo Ágape busca derrubar todas as barreiras que lhe impeçam de amar o outro. A parábola do Bom Samaritano mostra que o Ágape motivou o viajante a socorrer aquele judeu vítima de ladrões, passando por cima de todas as barreiras de ódio inter-racial que havia entre os dois povos (Lc 10:25-37). Ágape é um exercício de misericórdia, tolerância e aceitação.
Ágape não é simplesmente um sentimento. Jesus ordena aos seus discípulos que amem até mesmo seus inimigos. Ágape não nasce no nosso coração e morre sem que possamos controlar. Ele não é um sentimento despertado por outra pessoa em nós. O amor cristão é uma participação do Espírito Santo juntamente com uma decisão em fé de querer ir ao próximo. Ágape envolve mente e coração, sentimento e decisão.
Sem esse amor, segundo Paulo, não sentido em nada do que fazemos, assim como não há sentido de ser cristão (1Co 13). Ágape é uma qualidade altruísta de se colocar ao lado da pessoa, de sentir suas dores e alegrias, de poder compartilhar da vida com ela. Ágape é a “cola” que mantém a comunhão da Igreja.
Como se trata de uma condição divina, um sentimento próprio de Jesus, ele nasce na medida em que o Espírito Santo transforma a nossa vida. Sem o Espírito, não há Ágape, e o cristianismo só transformará o mundo quando seus membros forem também transformados pelo amor.

Chara e Eirene – A conseqüência direta do Ágape esta evidente no restante das qualidades do fruto do Espírito. Chara e Eirene são sentimentos que seguem diretamente o indivíduo cheio de Ágape.
Traduzido como Alegria, a palavra Chara era usada nas saudações entre os gentios. Em Atos 23:26, mostra de Félix dirigida a Cláudio Lisias onde começa com o termo “Saudações!”. Porém, o termo grego, traduzido literalmente, significa: “Que a alegria seja convosco!”.
Chara não significa, no uso paulino em Gálatas, um êxtase de risadas, gargalhadas e euforia. Mais do que isso, Chara é uma qualidade de que se sente feliz, satisfeito, pleno, independente da situação que o mundo lhe ofereça. Se Ágape é uma decisão de amar que não depende do objeto amado, Chara é uma alegria que não encontra motivos externos, mas provém de um estado espiritual daquele que está cheio de amor.
Não é de se espantar que, das diversas vezes em que ocorre no Novo Testamento, Chara está acompanhada de tribulações, perseguições, necessidade de exercer paciência (At 13:52; 2Co 6:10; 1Ts 1:60). Aquele que possui a alegria do Espírito, a exercita em meio aos momentos mais difíceis da vida, pois ele tem, pela fé, motivos de alegria perene.
Em última estância, a alegria é um sentimento de satisfação, mesmo diante dos problemas, pois ela provém da fé nas promessas e ensinos de Jesus. Os discípulos se alegravam por serem perseguidos pelo evangelho, pois sabiam que neles estava se cumprindo às palavras de Jesus (At 5:41). Chara é uma qualidade da fé e da confiança.
Se alegria é um sentimento de satisfação independente das situações do cotidiano; Eirene é uma paz que não encontra razão no mundo para existir (Fp 4:7). Na aplicação paulina em Gálatas, paz tanto significa uma relação correta com Deus e com o próximo.
Pela graça, Deus nos reconciliou consigo em Cristo. Tal estado descreve a paz que existe entre Deus e o homem. Toda dívida, todo motivo de desacordo, tudo foi pago por Jesus, e de tal forma, existe Eirene entre Deus e os humanos.
Paz é um estado de serenidade, tranqüilidade e satisfação, assim como Chara. Contudo, Eirene é um estado de satisfação que abrange os relacionamentos humanos. Aonde a paz reinar, ali reina a harmonia entre os homens. Eirene então é antagônica a Eris.

Makrothumia – Traduzida por paciência ou longanimidade, está é a qualidade daquele que é tardio em irar-se. Qualidade daquele que não perde as esperanças com outra pessoa, apesar das situações adversas.
Aquele que é cheio de Makrothumia não se vinga, caso se sinta injustiçado, ele sabe aguardar o momento em que a justiça será feita. Essa qualidade abrange não só a paciência, mas também a esperança de que a pessoa mude.
Makrothumia é indispensável à manutenção da comunhão. Na convivência existem sempre situações onde ocorrem desentendimentos, frustrações, ira. O indivíduo cheio de Thumos logo descarrega sua ira e assim destrói a comunhão e a amizade, mas o Makrothumia é aquele que mesmo chateado ainda investe na comunhão com seu agressor, resguarda-se da ira para que possa resgatar a amizade. Só haverá Eirene em uma comunidade quando seus membros desenvolverem Makrothumia.
Este seria o sentido de longanimidade. Não é somente a paciência inerte, mas uma ação em prol da unidade e da paz, eliminando a ira que não produz justiça, mas desarmonia. Makrothumia é parceira da esperança.

Chrestotes – Traduzida como bondade ou benignidade. Significa uma ação de gentileza e doçura que recua diante da idéia de provocar dor. Chrestotes é usada diversas vezes para descrever a forma misericordiosa que Deus agiu com o homem, não imputando sobre ele a conseqüência de seus pecados. A benignidade de Deus é uma qualidade que age em favor do homem para perdoá-lo dos seus pecados e também transformá-lo em uma pessoa benigna para com o próximo. O benigno não só perdoa como também oferece condições para que o outro seja transformado pela bondade. Chrestotes está intrinsecamente ligada à capacidade de perdoar e exercer bondade.

Agathosune – Esse termo também pode ser traduzido por bondade ou benignidade; mas seu significado é mais amplo do que Chrestotes. Alguns acreditam que Agathosune é a própria Chrestotes em atividade.
Paulo, porém, visa uma outra aplicação para Agathosune. Para os escritores gregos, existe uma diferença entre o justo e o bondoso. O justo (dikaiosune) é aquele que dá aos homens segundo o que lhe é devido, de acordo com a lei. Já o bondoso (agathosune) vai além dos limites da justiça para que possa ajudar e beneficiar o próximo. O termo em português que mais poderia se aproximar de Agathosune seria generosidade.
Façamos uma comparação: Imaginemos que segundo a lei, o marido que pede divórcio esteja obrigado a dar apenas 10% dos seus rendimentos para o sustento de sua família após a separação. Porém, o mesmo sabe que este valor é insuficiente para o sustento dos filhos. Caso ele seja apenas justo (Dikaiosune), ele fará aquilo que a lei recomenda a ele que seja feito. Porém, se ele for generoso (Agathosune), ele dará além daquilo que está prescrito na lei, fazendo o necessário para manter seus filhos em boas condições.
Essa é a qualidade do generoso, é aquele que promove a vida, oferecendo tudo que seja necessário ajudar o próximo. Agathosune é a capacidade daquele que pode exercer compaixão e misericórdia, sendo assim generoso, movido por bondade. Geralmente o termo Agathos, que é a raiz de Agathosune, representa o oposto de Ponêros, que significa maligno, avarento, mesquinho. Sendo assim, Agathosune representa também a qualidade daquele que não é egoísta, não estando preso aos bens materiais.

Pistis – Esta palavra é comumente traduzida por fé. Porem, na aplicação do apóstolo Paulo em Gálatas, ela está próxima do significado de fidelidade, por ser uma virtude ética.
Fidelidade é capacidade de manter-se integro diante de Deus e dos homens. Pistis é a qualidade daquele que não negocia a confiança do próximo. Também pode ser usada no sentido de obediência leal (Mt 25:21). A firmeza de caráter é fundamental para a pessoa cheia de Pistis.
Geralmente Paulo a usa para descrever obreiros fiéis a Deus e a missão do Reino de Deus. Descreve o caráter daqueles que se mantém em obediência a Deus (2Tm 2:2). Paulo recomenda as mulheres que permaneçam Pistis em todas as coisas (1Tm 3:11). Ser digno de confiança faz parte do sentido de Pistis.

Prautes – A mansidão hoje é mal interpretada por muitos, chegando a ser sinônimo de covardia, passividade mórbida e ausência de força. Porém, o termo Prautes não traz em si esse significado.
Prautes está associada à qualidade que torna as pessoas delicadas e suaves no trato com os outros. A gentileza seria o termo que melhor se aplicaria à Prautes. No grego secular era muito usado para aqueles que se mantém brando em meio a debates, não perdendo assim a calma.
Manter-se calmo em meio a situações de nervosismo e ira é inerente ao Prautes. O manso é aquele que consegue aceitar disciplina e correção sem irar-se. A delicadeza faz do homem capaz de lhe dar com as mais diversas pessoas e situações de forma sábia. Cortesia seria uma ótima palavra para definir Prautes.
Nas Escrituras, a mansidão é geralmente contrastada com a soberba, altivez de Espírito que leva a arrogância. A humildade caminha juntamente com a mansidão. O homem Prautes é capaz de agir com brandura para levantar os que estão caídos, dando-lhes novo ânimo a prosseguir no caminho cristão.
Prautes é o sinônimo de um caráter equilibrado entre a falta de ira e a ira excessiva. Jesus exerceu Prautes mesmo quando destruiu o comércio no Templo, pois sua ira estava a serviço da justiça de Deus (Jo 2:12-17).

Egkrateia – Se Prautes é um caráter equilibrado entre a ira e a passividade, Egkrateia a qualidade do homem equilibrado por excelência.
Exercer domínio sobre seus desejos é o que caracteriza uma pessoa Egkrateia. Ao aconselhar jovens quanto ao casamento, Paulo afirma que se alguém não for capaz de controlar seus desejos, que procurem então casar-se (1Co 9:25). Para tais pessoas, Paulo está afirmando ser impossível exercer domínio próprio (Egkrateia) na área afetiva e sexual.
No grego secular, esta palavra geralmente significa abstinência sexual. Era uma qualidade admirável aqueles que exerciam Egkrateia sobre seus apetites. Logo, a palavra tornou-se sinônima de asceticismo, da abstinência total de todos os prazeres mundanos que contaminem o espírito.
O que está no centro do significado da palavra Egkrateia é a mensagem de que o homem não pode abandonar a razão para tornar-se escravo dos seus desejos. Não significa em si a abstinência de qualquer prazer que traga alegria ao corpo e a alma, mas o seu uso moderado, sem excessos.
Porém, o uso em Gálatas parece implicar um domínio sobre si mesmo que é indispensável para o exercício do amor cristão pelo próximo. Toda concupiscência leva o homem a abandonar virtudes necessárias ao bom convívio com o próximo. Quando se extrapola os limites do desejo, geralmente quebra-se a barreira do respeito e da decência, levando assim escândalo e desrespeito ao próximo.
Quem não possui equilíbrio em suas relações, acaba por inviabilizar o bom convívio com seus irmãos, sendo assim prejudicial a comunhão e unidade. Ele abandona o amor ao próximo em entrega-se ao amor egoísta, que visa apenas à realização de seus próprios desejos e caprichos.
Domínio próprio vem a ser então a qualidade daquele que se contem em favor de um bem que está acima de seus desejos egocêntricos. Egkrateia é próprio daqueles que perseveram em alvos mais nobres.
Nem todo incontinente o é por opção. Em certos momentos a pessoa tornou-se a tal ponto escrava do desejo que realiza atos errados mesmo contra sua vontade. Egkrates é o homem principalmente transformado pelo Espírito ao ponto de resistir aos impulsos que ele reconhece como sendo maus.

Fica visível que o fruto do Espírito consiste numa transformação interior que possa aniquilar com todo o egoísmo humano. As qualidades do Fruto são visivelmente contrastadas com a desarmonia que as obras da carne causam no meio de uma Igreja. O amor, a bondade, a continência, a generosidade e todas as demais qualidades são, em si, a chave para unificar a comunidade cristã; e assim repelir toda facção, discórdia, ira, prostituição e desejos que apenas trazem a tona o egoísmo próprio de nossa natureza caída.

Como já foi dito; mais do que criar uma nova lista de regras, Paulo estava apenas ensinando aos Gálatas que seguir em amor faz com que brote comportamentos mais nobres e sagrados do que qualquer lei jamais irá produzir. O nervo central das obras da carne é o egoísmo, e infelizmente a lei serviu para que tal sentimento crescesse ainda mais entre os “crentes”. O único antídoto contra este mal não é mais uma lei, mas a vida que pela graça e fé, gera amor, e com ele, as demais qualidades vindas do coração de Deus.

Não há lei, nem contra e a favor, a essas coisas!


Fonte: Para realizar esse estudo tive a ajuda maravilhosa do livro "Obras da Carne e o Fruto do Espírito", de William Barclay, da Editora Vida Nova.

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