quinta-feira, 20 de março de 2008

SALMO 51 – UM COMENTÁRIO EXISTENCIAL


1. Tem piedade de mim, ó Deus, por teu amor! Apaga minhas transgressões, por tua grande compaixão!

Pois onde iremos encontrar o amor e perdão que restaura? Neste mundo o pecado e a falha podem ser até “perdoados”, mas nunca apagados, relevados, mas nunca esquecidos, seja pelo autor ou pelas possíveis vitimas de nossas falhas. Existe uma mancha em nós mesmos que cerimônia nenhuma pode tirar; há algo em nossas atitudes que nos torna marcados, infectados, manchados. Precisamos não de uma palavra de perdão, mas de uma atitude restauradora.

2. Pois reconheço minhas transgressões e diante de mim está sempre meu pecado;

Simples palavras, mesmo que sejam divinas, não apagam o fato de que minhas atitudes sejam passadas, sejam presentes, são reprisadas num flashback constante. A alma marcada revive suas falhas constantemente. Todo pecado causa um trauma, e esse ponto traumático é retro-alimentado, num processo circular e “karmático” (i.e. Karma) de “relembrar-reviver-ressentir-se”. Purificação significa superação, vencer os pontos traumáticos que geram escravização a uma situação passada que teima em reencarnar no nosso presente, não havendo esperança de um novo futuro.

3. Pequei contra ti, contra ti somente, pratiquei o que é mau aos teus olhos. Tens razão, portanto, ao falar, e tua vitória se manifesta ao julgar.

Não! Não foi somente Deus o “atingido” pelo pecado de Davi! Uma vida foi destruída, um homem que era valoroso perdeu sua vida covardemente. Mas Deus é o Supremo Outro, ou seja, desta forma o nosso pecado sempre atinge os outros, num processo que vai do homem e chega até Deus, pois tudo que fazemos contra nós mesmos e contra o outro fere ao zelo que o Senhor possui por toda humanidade.

4. Eis que eu nasci na iniqüidade, minha mãe concebeu-me no pecado.
5. Eis que amas a verdade no fundo do ser, e me ensinas a sabedoria no segredo.
6. Purifica meu pecado com o hissopo e ficarei puro, lava-me, e ficarei mais branco do que a neve.

Apesar da fraqueza que acomete a todos os homens, fraqueza inerente a natureza de quem é livre (pois nem todos os livres são fortes e estáveis) Davi não quer fazer de sua natureza tendenciosa um motivo para desculpar todas as suas falhas. Ao mesmo tempo em que “minha mãe me concebeu em pecado” e tendo assim “herdado o mal”, o Senhor pode me ensinar no segredo, ou seja, me restaurar desde o mais profundo do meu ser, da raiz de todas as minhas motivações. Davi conhecia todo o processo de purificação judaica, inclusive cita o hissopo, uma planta usada nas cerimônias de purificação (Lv 14.4; Nm 19.18). Mas tal processo não é suficiente para que haja a purificação. Não são métodos, rituais ou palavras de absolvição que transformam a vida de quem está sujo, mas uma comunicação entre o meu ser e a verdade, mas no fundo do meu ser só Iahweh pode tocar.

7. Faze-me ouvir o júbilo e a alegria, e dancem os ossos que esmagaste.
8. Esconde a tua face dos meus pecados e apaga minhas iniqüidades todas.
9. Ó Deus, cria em mim um coração puro, renova um espírito firme no meu peito; não me rejeites para longe de tua face, não retires de mim teu santo espírito.

O verbo criar é mesmo atribuído a Deus em Gênesis 1, Em Isaias 65.17 é dito que o Senhor irá criar “novos céus e nova terra”. Tal ato está reservado a Deus, que faz surgir ordem do caos, lógica do que é ilógico, vida onde há morte, pureza em meio a impureza. Aquilo que Deus faz não se limita a palavras, mas é tal atitude capaz de reformular os caminhos de destruição que nossos próprios pés trilharam. Purificação, como já falei, não é uma palavra de absolvição, nem mesmo uma cerimônia de perdão, mas uma atitude restauradora da parte de Deus, que comunica verdade e sabedoria ao meu ser, fazendo surgir ordem em meio ao caos interior de uma alma consciente de seus erros.

10. Devolve-me o júbilo da tua salvação e que um espírito generoso me sustente.
11. Ensinarei teus caminhos aos rebeldes, para que os pecadores voltem a ti.

Tal condição de restauração me leva a enxergar e compreender que na vida também existe alegria, que ela não é apenas predestinada a tristezas e maldade. A purificação também traz uma nova percepção da vida, onde a alegria do criador tem lugar. A generosidade de espírito é essencial para que os outros sejam ensinados, mas não se ensina generosidade, apenas se vive ela, externando-a ao mundo, e nossa generosidade espelha os caminhos de Deus a outros que também precisam ser ensinados. Ou seja, Ser purificado e purificar outros depende sempre da generosidade, e não da justiça implacável ou do dedo em riste, seja na cara dos outros ou em minha própria.

12. Livra-me do sangue, ó Deus, meu Deus salvador, e minha língua aclamará tua justiça.
13. Ó Senhor, abre os meus lábios, e minha língua anunciará o teu louvor.
14. Pois tu não queres sacrifício e um holocausto não te agrada. Sacrifício a Deus é espírito contrito, coração contrito e esmagado, ó Deus, tu não desprezas.
15. Faze o bem a Sião, por teu favor, reconstrói as muralhas de Jerusalém.
16. Então te agradarás dos sacrifícios de justiça – holocaustos e ofertas totais – e em teu altar se oferecerão novilhos.

Finalizando, Davi não enxergava na sua religião, na sua liturgia, nos seus processos expiatórios, a chave para uma vida purificada. Com certeza, ao cair em si sobre sua condição, o piedoso rei de Israel buscou os métodos legais para que sua culpa fosse apagada e ele fosse novamente re-habilitado perante Deus. Mas o conforto da alma não foi conquistado dessa forma. A Paz de Espírito transcende aos rituais e a alegria excede o culto. O sacrifício a Deus está em entregar aquilo que temos de mais verdadeiro. O que sobra de um homem que cai na real e percebe que matou um homem covardemente apenas para esconder seu pecado? Se ele for verdadeiramente humano, o que sobrará serão apenas as migalhas de um coração despedaçado. O sacrifício que se oferece a Deus é a consciência, mesmo em frangalhos, de que pecamos e que abalada está a relação com Deus e com os homens. Só após o culto “racional” (consciente) é que podemos agradar a Deus com nossos rituais.

Que haja mais perdão e purificação, processos divinos que criam ordem no caos e restaura a pureza do que está manchado. Sendo assim o coração contrito, resultado da profunda conscientização do que somos e fazemos; o motivo de nossos atos e força por trás de nossa religião. Não nos basta mais palavras de perdão, mas do que ouvir, queremos sentir um novo coração, vindo do poder criador de Deus, bater no nosso peito.

Sendo assim, me perdoa e me purifica!

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