sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Caçador da Vida

Confesso que não li o livro “O caçador de Pipas” por um preconceito de que best-sellers geralmente não são livros bons (pelo menos para maioria dos autores essa idéia realmente funciona). No entanto assisti ao filme, e agora quero muito ler o livro.

Não desejo aqui comentar as muitas reflexões que a história desse livro pode suscitar, nem mesmo fazer um resumo comentado do filme. Porém, gostaria apenas de comentar uma cena (das várias) que me incomodou.

O personagem principal, Amir Jan, chega até um orfanato em Cabul, capital do Afeganistão dominada pelos Talibãs (grupo político-religioso formado por radicais islâmicos), a procura do sobrinho que teve sua família morta. Ao encontrar o chefe do orfanato, este lhe diz que entregou seu sobrinho a um dos chefes radicais Talibãs que é um pedófilo e abusador de crianças. Amir Jan se revolta e acusa o dono do orfanato de não cumprir o seu dever em proteger aquelas crianças. É justamente na resposta do dono do orfanato que reside à grandeza dessa cena. Não saberia agora reproduzir literalmente sua fala, mas seria mais ou menos assim:

­- Esse homem me dá dinheiro, mesmo que pouco, para levar uma criança. Se eu não entregar uma criança, ele então leva dez. Vendi todos os meus bens para fazer esse orfanato, tenho família no Paquistão, mas escolhi viver nesse inferno para ajudar essas crianças. Todo o misero dinheiro que recebo pela “venda” da criança, é usado para comprar comida para as restantes, não fico com nada para mim. Sacrifico uma em favor das outras. E que Deus me julgue caso esteja errado.

O que dizer diante de uma frase como essa? Qual postura poderia ser melhor do que o mais constrangedor silêncio? Todas as estruturas morais, todos os “princípios”, toda noção de “certo e errado” perde-se quando o “bem” está em jogo. São situações como essa que revelam que o amor e a bondade estão muito acima das nossas construções teóricas sobre o bom viver.

Situações como essa apenas revelam o quanto nossos princípios religiosos não funcionam diante da “santidade misteriosa” da vida, e que Deus pode revelar ao nosso coração coisas que estão acima daquilo que os “profetas” afirmaram ser “vontade de Deus”. Qual é a verdadeira vontade de Deus? Essa não seria a pergunta mais natural quando tudo aquilo que achamos conhecer como sendo essa vontade se perde diante dos horrores da vida.

A fala fictícia (não tanto) do dono do orfanato apenas confirma aquilo que muitos já disseram e ainda clamam: É preciso reencontrar o Deus que faz sentido na vida real, mesmo sendo essa vida sem sentido, para poder transformamos a nossa vida. Um Deus que não empurra princípios que precisem funcionar no nosso cotidiano, mas que ajude-nos a entender qual é o principio que podemos fazer surgir do contexto em que vivemos.

Qual era o princípio do dono do orfanato: A própria vida daquelas crianças. A vida que triunfa sobre a religião, sobre a “vontade de Deus”.

Não quero mais saber qual é a vontade de Deus, pois essa é a pergunta mais perigosa que alguém pode fazer a outro. Perguntar pela vontade de Deus implica na busca em compreender o que é certo e errado, o bem e o mal, e essa curiosidade “matou o homem”. Quero entender a vida, e de que forma posso servir a Deus nela, sem regras, sem muletas, com o olhar de quem descobre um novo mundo.

Quero novos ventos, novos tempos. Como conseguir isso? Daqui pra frente já não sei escrever.

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